Lide Predatória e Processo do Trabalho: etica, eficiência e acesso à justiça

A Justiça do Trabalho ocupa, historicamente, um papel central na garantia de direitos sociais e na pacificação de conflitos trabalhistas. Seu desenho procedimental — pautado pela simplicidade, celeridade e ampla acessibilidade — permitiu que trabalhadores, muitas vezes em condição de vulnerabilidade econômica, encontrassem proteção e resposta jurisdicional efetiva. Esse caráter inclusivo, contudo, tem sido tensionado por um fenômeno contemporâneo que preocupa magistrados, empresas, órgãos de controle e a própria advocacia: a chamada lide predatória.

Longe de ser simples repetição ou volume elevado de ações, a lide predatória representa o uso sistemático, padronizado e desvirtuado da jurisdição. Desta forma, orientado não pela busca legítima de tutela, mas por estratégias de pressão econômica, obtenção artificial de acordos ou captação massiva de clientela. Esse fenômeno se torna especialmente relevante no processo do trabalho devido à facilidade de ingresso, à informalidade e à gratuidade, que podem ser exploradas de modo distorcido. Discutir a lide predatória significa, portanto, equilibrar dois valores constitucionais complementares: o direito de ação e o dever de boa-fé processual.

A Lide Predatória como Fenômeno Estrutural

A expressão “litigância de má-fé” é conhecida e regulamentada há décadas:

  • refere-se a condutas pontuais, verificáveis no caso concreto, como alterar a verdade dos fatos;
  • ou litigar de modo temerário.

A lide predatória, por sua vez, é algo mais amplo e complexo. Ela não se manifesta em situações isoladas, mas por meio de padrões organizados de atuação, em que centenas ou até milhares de ações são ajuizadas com narrativas idênticas e provas mínimas ou inexistentes. Nessas situações, o processo deixa de ser meio de resolução de um conflito real e passa a ser instrumento de estratégia, de pressão ou de mercado.

No contexto trabalhista, esse padrão aparece, por exemplo, no ajuizamento simultâneo de ações praticamente indistinguíveis, sem comprovação das condições específicas de trabalho de cada empregado, ou ainda na apresentação de alegações genéricas replicadas sem qualquer individualização. Esse tipo de prática não apenas compromete a qualidade e a razoabilidade do debate jurídico, mas sobrecarrega o sistema e desvia recursos públicos, judicializando demandas que carecem de lastro probatório mínimo.

O aspecto fundamental para distinguir a lide predatória da advocacia de massa legítima está, portanto, na finalidade. A advocacia de massa é natural nas relações de trabalho padrão — como ocorre com grandes empregadores — e é legítima quando cada ação possui tratamento de forma individual de fatos e provas. Já a lide predatória transforma o processo em instrumento de atuação mecânica, em que o trabalhador não é sujeito de defesa de direitos, mas unidade dentro de um fluxo repetitivo.

Desafios Éticos e a Responsabilidade Profissional

O exercício da advocacia é função essencial à Justiça, como determina a Constituição Federal. Isso significa que o advogado não apenas representa interesses privados, mas participa diretamente da construção da verdade processual e do funcionamento íntegro da jurisdição. Quando a lide predatória surge, não raramente ela se liga a práticas profissionais que fragilizam essa responsabilidade: utilização de modelos padronizados sem consulta individual, obtenção de procurações em série sem orientação jurídica adequada e ajuizamento em localidades desconectadas da relação laboral por expectativas de decisões mais favoráveis.

Essas condutas não podem ter análises apenas sob a ótica processual. Elas possuem natureza ética e institucional. A legislação autoriza que, comprovado desvio reiterado e consciente, o advogado possa ser responsabilizado solidariamente e, quando necessário, seja instaurado procedimento disciplinar perante a Ordem dos Advogados do Brasil. A finalidade, porém, não é punitivista. O objetivo é preservar a credibilidade da advocacia e impedir que a jurisdição seja utilizada como mecanismo de compressão econômica ou estratégia de volume.

É igualmente importante frisar o risco de se banalizar o conceito de lide predatória. O combate ao abuso não pode se transformar em instrumento de intimidação ou restrição ao exercício da advocacia trabalhista. Principalmente, considerando que esta historicamente viabiliza o acesso à justiça de populações vulneráveis. A análise, portanto, deve ser sempre contextual, fundamentada e cuidadosa.

Caminhos Institucionais para o Equilíbrio

O enfrentamento da lide predatória exige uma abordagem integrada, que não dependa apenas da atuação isolada do magistrado. Tribunais, OAB, corregedorias e núcleos de gestão de precedentes possuem papéis complementares na detecção e prevenção do abuso. A utilização de ferramentas de análise de dados, por exemplo, tem permitido identificar padrões atípicos de ajuizamento, sem violar o direito de ação individual. Da mesma forma, a adoção de decisões pedagógicas — que fundamentem claramente os elementos identificadores da conduta predatória — contribui para estabilizar expectativas e orientar a atuação da advocacia.

Outro caminho relevante é o refinamento da cultura da boa-fé processual. O processo não pode ser espaço de oportunismo ou de estratégia vazia; ele deve refletir responsabilidade técnica, individualização dos pedidos e compromisso com a verdade. Quando advogado, juiz e parte compartilham essa premissa, a litigância se torna mais qualificada. Assim, tratam o conflito com maior precisão e a jurisdição cumpre sua função democrática.

Conclusão

A lide predatória é um fenômeno que desafia não apenas o funcionamento da Justiça do Trabalho, mas também a própria cultura jurídica brasileira. Combatê-la significa reafirmar que o direito de ação não é absoluto e que sua legitimidade depende da boa-fé e do respeito à função pública da jurisdição. Ao mesmo tempo, deve-se conduzir essa tarefa sem restringir o acesso à justiça nem deslegitimar a advocacia de massa responsável. O caminho é o equilíbrio: fortalecer a ética processual, incentivar a individualização e promover diálogo institucional. Uma Justiça que acolhe, protege e distribui direitos só permanece íntegra quando é capaz de se defender dos seus usos distorcidos, sem se afastar de sua vocação essencial de garantir dignidade às relações de trabalho.

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